A maneira como se trabalha vai variando. Em certos dias confesso que estou muito focada no trabalho e apenas vejo o animal sem olhar para o dono. Se vir o dono no dia seguinte não o reconheço, por outro lado, se vir o animal passado um ano lembro-me perfeitamente de tudo, porque é que veio à consulta, se tentou morder-me, se o ajudei a ficar melhor ou nem por isso. Mas nem sempre é assim. De vez em quando reparo nos donos e preocupo-me, choro com eles, fico ansiosa se não os vejo durante uns meses. E há semanas assim, em que estes clientes especiais aparecem todos ao mesmo tempo. A semana passada foi uma delas.
Mrs Williams é uma senhora simpática com uma Jack Russel Terrier muito velhinha chamada Megan. A cadela está a urinar dentro de casa e Mrs Williams está convencida que a Megan tem uma infecção urinária. Até aqui tudo bem, nada de extraordinário. Parece um caso fácil de resolver. No meio da conversa animada, Mrs Williams pergunta-me o que acho dos olhos da cadela. "Ora a cadela está ceguinha, tem cataratas" digo eu muito calmamente. De repente tudo muda. Os olhos da Mrs Williams começam a tremer com lágrimas e eu sei que meti a pata na poça. Olho de soslaio para o computador para a ficha da Megan e confirmo que a cadela tem cataratas há anos. Também reparo que Mrs Williams veio várias vezes com queixas sobre a cadela urinar dentro de casa. Aparentemente foram feitas análises e nunca foi encontrado nada de errado. Começo a confortar a Mrs Williams com as frases simpáticas do costume "ela está sempre na mesma casa por isso não precisa da visão", "a falta de visão é compensada pelo olfacto e pela audição", "ela não precisa de ler o jornal, ver televisão ou conduzir um automóvel, só precisa de festinhas" e por aí adiante continuo com as citações enquanto a outra metade do meu cérebro vai processando a situação. Finalmente faço dois mais dois. O marido de Mrs Williams não veio hoje por isso provavelmente está outra vez internado no hospital deixando Mrs Williams sozinha em casa (a recepcionista perguntou por ele à chegada). Mrs Williams tem demência e esquece-se que a cadela tem cataratas, esquece-se de a levar à rua e é por isso ela urina em casa. Nenhum dos veterinários anteriores que viu a Megan para o mesmo problema foi capaz de escrever isto no computador (se eu soubesse teria mais cuidado), escolhendo antes frases enigmáticas e evitando usar antibióticos (esta coisa à inglesa de se ser politicamente correcto). Com a Mrs Williams a chorar desalmadamente pela cadela e a pedir antibióticos para a infecção acabei por não ser capaz de lhe dizer que não e injectei a cadela com um antibiótico de duração de 24h, pedindo ao mesmo tempo uma amostra de urina (ainda hoje continuo à espera). Mrs Williams começa a acalmar-se e para o final da consulta já está bem disposta e até diz umas frases em polaco depois de eu lhe dizer que sou portuguesa. À saída conversa mais um bocadinho com a recepcionista que já a conhece há muitos anos e que de facto tem vindo a observar a queda das capacidades mentais da senhora. Depois de uma consulta delas sinto-me mesmo mal de ter de cobrar dinheiro, mas infelizmente a clínica não é minha...
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