sábado, 22 de março de 2014

Os Veterinários Suicidam-se aos Mil




No Reino Unido há alguma preocupação com a saúde mental dos veterinários. Nota-se pela presença de instituições de caridade que se dedicam ao assunto assim como alguns inquéritos que a Ordem distribui pelos veterinários. Tudo começou por um estudo feito há algum tempo que demonstrou que a taxa de suicídios entre veterinários é 4x mais elevada do que o resto da população e 2x mais alta do que profissionais de outras áreas da saúde. Não sei como será em Portugal, mas no Reino Unido é normal conhecer-se um veterinário que se tenha suicidado! 

Os estudos sobre o suicídio não devem ser particularmente fáceis de realizar. Na altura foram apontadas algumas causas para os suicídios entre veterinários - apresento-as aqui em seguida, juntamente com a minha opinião pessoal. Provavelmente será igual para outras profissões, a diferença talvez seja no facto que os veterinários são os únicos com acesso ao "precioso" líquido amarelo que oferece uma morte tranquila.

- Os veterinários tendem a desenvolver personalidades workahólicas em que sentem a contínua necessidade de evoluir na carreira. Habituaram-se a estudar desde novos e muitas vezes é a única coisa que sabem que conseguem fazer bem. Claro que é impossível saber tudo de oftalmologia, cardiologia, dermatologia, cirurgia, imunologia, hematologia, medicina de animais exóticos, gastroenterologia, oncologia, urologia,..., o que faz com que o veterinário muitas vezes tenha sentimentos de culpa quando lê um livro normal em vez de um livro técnico, ou quando vê um filme em vez de uma aula online de um curso pelo qual pagou 500 libras mas que não têm paciência para pensar nisso fora do horário de trabalho.

- Como o esforço para entrar na profissão e para exercer é elevado, as expectativas relativamente à vida profissional acabam por ser demasiado altas e muitas vezes não correspondidas. Os investimentos pessoais são muitas vezes postos de lado, não havendo um suporte pessoal concreto quando o lado em que se investiu falha.

- a profissão é stressante, começando pela dificuldade em entrar na universidade. Existe pressão contínua de se ser bem sucedido na escola, durante a universidade e no trabalho. A entidade empregadora muitas vezes não é particularmente simpática, especialmente em Portugal em que os horários de trabalho não são respeitados. Muitos veterinários trabalham até tarde, sábados, domingos e muitas vezes durante a noite, acabando por não conseguir equilibrar a vida pessoal com a vida profissional. No ponto de vista do veterinário a remuneração ao final do mês raramente compensa o esforço profissional. Mesmo quando no Reino Unido um veterinário ganha o dobro ou o triplo do que em Portugal, há sempre a percepção que o trabalho é mal pago. 

- O dia do veterinário é sempre imprevisível, a semana pode ser verdadeiramente exausta ou muito entediante. Acaba por ser complicado prever a disponibilidade para outras coisas fora do trabalho.

- A profissão é viciante porque que o veterinário tem de "resolver puzzles" e muitas vezes existem resultados imediatos. Todos os dias são diferentes! Esta "montanha russa" de dias espectacularmente interessante com dias em que corre tudo mal não pode fazer bem a ninguém.

- O veterinário é treinado para pensar que a qualidade de vida é mais importante que a quantidade, e que a eutanásia é necessária quando não existe bem-estar. Esta crença é facilmente extrapolada para questões pessoais.

- O veterinário tem acesso a um "suicídio fácil". Tem a chaves da clínica e acesso aos medicamentos. O veterinário está familiarizado com o processo da eutanásia e sabe o que esperar se injectar o"líquido amarelo na veia. O veterinário sabe encontrar veias facilmente.

- Muitos veterinários automedicam-se com valium em vez de procurarem ajuda profissional. O acesso a outras drogas como a metadona, a quetamina e o óxido nitroso (o gás que faz rir) também é fácil, se bem que nas clínicas mais evoluídas existe um registo de utilização das drogas e controlo das quantidades utilizadas. Claro que com um bocadinho de trabalho não é difícil dar a volta a essa questão. Aqui no Reino Unido há rumores de veterinários viciados em buprenorfina.

- Muitos veterinários trabalham sozinhos não tendo ninguém para desabafar. Eu fico muito contente com o facto de trabalhar com pessoas com quem posso discutir a abordagem a clientes difíceis e me ajudem e suportem nas decisões clínicas. O que eu noto aqui no Reino Unido é que entre colegas existe a mentalidade "o colega veterinário tem sempre razão e fez o seu melhor com os instrumentos que tinha" enquanto que em Portugal a abordagem é diferente "o colega veterinário fez asneira, não posso confiar nele, o cliente tem sempre razão".

- Existem muitas queixas de veterinários e às vezes as consequências são graves, todos os anos aparecem notícias com fotografias de veterinários que erraram numa decisão de um caso clínico e que deixaram de poder exercer. Aconteceu há pouco tempo com um veterinário que foi expulso da Ordem por demorar muito tempo a ir a uma quinta eutanasiar um cão que estava em sofrimento,  por ter sido atropelado pelo dono. Mas pelo que ouvi, nos Estados Unidos é mil vezes pior.

- O veterinário tem que ganhar algum traquejo no controlo do envolvimento emocional com a profissão. Se opta pela postura de não se preocupar e não demonstrar sentimentos de empatia com o cliente e com o animal, corre o risco de ser mal interpretado e perder o cliente, que regra geral procura o veterinário mais pela sua capacidade de compreensão do que pelos conhecimentos técnicos. Lidamos com animais e não com pessoas, no fundo o mais importante não é descobrir o tipo de linfoma que o "Bolinhas" tem, mas como decidir conjuntamente com o dono a melhor forma para que o animal tenha qualidade de vida no tempo que lhe resta. Muitos dos veterinários que evitam "simpatizar" com os donos, porque realmente é muito cansativo, reencaminham as suas carreiras para a área da cirurgia. Por outro lado quando se passam muitas horas adoptando a frieza profissional, acaba-se por correr o risco de esta "se colar" à personalidade, e de transportá-la para a vida pessoal, originando falta de emoção e falta de empatia para com as outras pessoas em geral. 
O lado oposto desta postura consiste no veterinário demasiado emocional que o cliente adora, mas que anda sempre cansado porque se preocupa demasiado, dorme mal de noite a pensar nos casos, mas que estabelece laços com o cliente e chora quando tem de eutanasiar a única companhia da simpática senhora de 90 anos a quem todos os familiares morreram. Estes veterinários acabam por ser escravos emocionais da profissão e não se conseguem desligar quando vão para casa ao final do dia, ficando preocupados com o animal que ficou internado. "Será que vai morrer durante a noite quando ninguém estiver lá?" "será que vai arrancar o soro e ficar a sangrar do catéter?" "Será que dei os medicamentos certos?" "Será que me enganei no diagnóstico?" "Será que deveria ter eutanasiado o animal?" Tudo pode correr mal. Tive uma colega veterinária que pertencia a esta categoria. Fez um empréstimo ao banco para conseguir tirar o curso de medicina veterinária e acabou por desistir da profissão no primeiro ano em que esteve a trabalhar connosco. Começou a ter ataques de pânico durante as cirurgias e não conseguia lidar com muitas coisas que aconteciam na clínica, ficando a chorar. Acabou por ir trabalhar para o restaurante do IKEA, tendo de pagar agora por 40 anos as prestações ao banco por um curso que não exerce. Tenho esperança que ela no futuro possa adaptar a sua personalidade à profissão, ou então que consiga um emprego numa das outras áreas da veterinária.

Ou seja para se ser veterinário é preciso:

- gostar de animais e achá-los interessantes
- gostar de conversar com pessoas
- gostar da imprevisibilidade
- gostar de fazer teatro e de improvisar
- gostar de resolver problemas sob pressão
- gostar de estudar

Se fores estudante e não tiveres estas características - escolhe outra carreira enquanto é tempo!

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